O futebol como um fenômeno da cultura brasileira

As coisas só acontecem por acaso, necessidade ou vontade nossa! Epicuro - filósofo.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

A pelada que nos salva


Existe uma espécie de consenso entre quase todos os amantes do futebol: a certeza de que muito melhor do que assistir a jogos de futebol, ver futebol, ir ao estádio acompanhar seu time jogar, enfim, prostrar-se frente à TV para torcer pelo seu clube do coração, só mesmo jogar futebol. E foi justamente para isso, para essa prática descompromissada do futebol que inventou-se a “pelada”. A pelada é uma daquelas instituições sem as quais os brasileiros não podem viver.
O sujeito passa sem a previdência social, sem a universidade, sem a instituição bancária, prescinde do automóvel, prescinde da profissão, esquece o salário mínimo, vive sem o viagra, passa até sem o cardiologista, mas não vive sem uma saudável pelada no meio ou nos fins de semana. E a pelada não serve apenas, como parece ser o seu objetivo primordial, para que ponhamos em dia, nesses tempos de sedentarismo, a nossa parca condição física. Também não serve apenas, como parece ser a sua finalidade acessória, para baixarmos aquela “barriguinha” de que a mulher, ou a amante, ou a namorada, reclama tanto.
A pelada é muito mais do que isso. Conheço sujeitos que jogam a sua peladinha como o seu mais eficiente regulador psicológico. Diria que há até indivíduos que só ainda não cometeram suicídio por causa da saudável prática de sua bendita pelada. Para escapar do ontológico destino, como diriam os niilistas, de terem vindo do nada e caminharem inexoravelmente para o nada, há os indivíduos que bebem, os que viram santo, os que batem na mulher, os que se julgam profetas, os que despirocam de vez, os que tomam cianureto, e os que, enfim, jogam sua pelada.
A pelada, para falarmos um pouco da sua origem e melhor compreendermos a sua importância humana, cultural, antropológica mesmo, surgiu na vida do brasileiro por uma questão, digamos, sociológica. Todos sabem que quando o futebol chegou ao Brasil, trazido pelas mãos, ou melhor, pelos pés de Charles Miller, aqui se instalou pelas mãos – e, claro, pelos pés - das elites. Assim, no seu início, o futebol era um esporte eminentemente elitista do qual os pobres, os negros, os proletários, a por eles chamada “gentinha”, enfim, não podiam tomar parte.
Para evitar o achego ao esporte dessas classes da base da pirâmide social, os membros da elite brasileira do fim do século passado e início deste século praticavam o futebol em recintos fechados e só franqueados a seus membros: os chamados clubes sociais que até hoje conhecemos. Como o esporte era sedutor para todos, os pobres, os negros e os proletários, que inicialmente entravam apenas como platéia formando o que hoje conhecemos como a torcida, resolveram entrar verdadeiramente no jogo. E o que fizeram para poderem praticar tão maravilhoso esporte? Desceram de cima dos muros dos clubes onde se amontoavam para ver os ricos jogar e fundaram a pelada.
Em que, então, consistia, a pelada? Consistia no seguinte: o sujeito descia dos muros dos clubes, convidava os amigos e, no meio da rua, ali no meio das esburacadas ruas dos subúrbios, as chamadas várzeas do futebol, colocavam quatro pedras no chão para formarem as traves, compunham dois times de amigos e, de canelas nuas, sem a indumentária adequada – daí o termo “pelada”, porque jogavam “pelados”- iam imitar os membros da elite brasileira naquele jogo espetacular. Como vocês podem ver, também no futebol já se reproduziam as relações perversas mantidas no Brasil entre a sua elite e o seu povo.
Mas deixemos de sociologismos e vamos ao que interessa. E o que interessa é registrarmos aqui a importância da “pelada” na vida do brasileiro e, por conseqüência, do próprio futebol. Como o propósito dessa coluna é o de discutirmos o futebol sob o prisma da cultura, trouxe hoje aqui para bater uma bola com vocês um craque da pelada em uma de suas tantas antológicas jogadas. Trata-se do músico, compositor e verdadeiro cronista da MPB, o famoso Aldir Blanc, parceiro de João Bosco e autor de pérolas do nosso cancioneiro popular tais como “Tá lá um corpo estendido no chão” e “Corsário”. Escutemos então, através da sua pena de cronista, esse texto genial sobre a “pelada” intitulado: “Enterrem meu coração no mato da várzea”. Eis o texto:

“A pelada na várzea é o clássico que disputamos em nossos melhores sonhos. Em cada craque milionário mora o fominha com a unha do dedão lascada por ter chutado, no fim da pelada, já de noite, uma pedra drummondiana. Todos estivemos lá um dia, e a solenidade de nossos gestos, antes da partida, era de final de Copa do Mundo: coração batendo forte, boca seca, calçando os velhos meiões (os meus eram azuis e brancos), passando o cadarço da chuteira por debaixo da sola antes de amarrar, sentindo o cheiro de sol de quarador e de sabão vagabundo na camisa que o dono nos entregava... Sim, aquele jogo, num sábado que parecia igual a todos os outros, pros lados de Ramos, seria o maior da minha vida. O resultado real importa pouco. Porque aquele jogo, naquele sábado, com a favela em torno e tiros na hora em que o adversário entrou em campo, foi aprimorado inúmeras vezes na memória e no sonho. Nessas lembranças oníricas, que são também celebração de uma adolescência cada vez mais distante, e por isso cada vez mais presente, aquele banal rito de passagem vem aos poucos adquirindo contornos de mito: o escorregão na lateral, que quase atira o esquálido zagueiro na vala, transformou-se num drible espetacular, após o firme desarme do ponta deles, arisco, um terror, e eu desço pela esquerda com a bola dominada, o vento na camisa, cheiro de sol e sabão vagabundo, cabeça erguida, como Nilton Santos, e, o sonho dos vinte anos, cruzei na testa do centroavante João Banana e gol! Mas nas reminiscências alcoólicas de um fim de noite no Lamas, com trinta e tantos anos, bati forte do meio da rua, e a redonda entrou no ângulo, no gogó da ema, lá onde a coruja dorme. Vencidos pela beleza do lance, os espectadores, até então hostis, aplaudiram, tímidos no começo, depois freneticamente, e um bêbado desdentado gritou:
“Valeu, Palito!”
Palito. É isso aí, meus netinhos: treinei no Vasco com esse apelido e quase, quase cheguei a titular. Problema nos meniscos.
Quando eu morrer, me enterrem num campinho de subúrbio, no menor e mais esburacado deles, perto da cabra vadia nelsonrodriguiana e de flores sem nome, e que um antológico passe de letra seja dado sobre a grama que prolongará meu peito onde, na várzea, um dia, vento na camisa, cheiro de sol e de sabão vagabundo, vibrou meu coração”.
Obs: Outra explicação para a origem do termo pelada: a palavra vem do espanhol pella (bola de borracha), daí pelada, jogo com bola de borracha.

Foto de Alexandre Battibugli

Um comentário:

Compromisso com o CCHLA disse...

Caro Edonio, parabéns pela "Pelada que nos salva". Além do universo mágico do futebol, você nos brindou com a mágica universal da literatura de Aldir Blanc,sempre emocionante com sua simplicidade exuberante. Abraço. Barroso.