O futebol como um fenômeno da cultura brasileira

As coisas só acontecem por acaso, necessidade ou vontade nossa! Epicuro - filósofo.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

A despedida de um grande artista


Tá certo. Há quem discorde da minha tese, digamos, romântica, de que o futebol nada mais é do que pura arte. Falo do autêntico futebol brasileiro, bem entendido! Aquele futebol que comove em campo, que arrebata o nosso espírito e nos atira na maior das inefáveis epifanias. A imponderável, lírica e irrespondível questão que nos assoma de como alguns homens obram, apenas com uma bola nos pés, tão sinuosos, estonteantes, líricos, radicais e mesmo subversivos milagres nos seus mais íntimos e autorais instantes de criação: as famosas jogadas de antologia de que nos falava Nelson Rodrigues, culminem ou não elas com o gol.
É que há igualmente neste vasto mundo - redutos de todas as criaturas - tanto o lugar do tolo como o lugar do sábio. Tanto o lugar dos entes criativos como o lugar dos seres obtusos. Afirmo isso para marcar de vez um parâmetro de eixo para essa nossa conversa de domingo. Ou seja, aqueles que não conseguem ver no jogo de futebol espaço para a sua consideração como expressão artística passarei a chamá-los doravante de seres obtusos.
E, convenhamos, seres obtusos os há de sobra e vários são seus modos de enxergar esse vasto mundo. De maneira que ser obtuso não entra aqui como uma classificação de demérito. Pelo contrário. Eu mesmo quando não acho a menor graça no fato de dois marmanjos ficarem atirando socos na cara um do outro, neste esporte que todos chamam de boxe, me vejo na pele do mais sideral dos seres obtusos de carteirinha. Afinal, há milhares de seres que apreciam o boxe, assim como eu aprecio o futebol. Como se vê, reside, portanto, aí, nessa consideração do que é esporte em contraposição ao que é arte, o cerne do tema que vamos tratar aqui, pois que é o propósito desta crônica abordar a despedida dos gramados de um verdadeiro artista da bola.
Os seres obtusos, por exemplo, aqueles que não conseguem ver o futebol como arte, argumentam que esta possui um complexo e específico estatuto constitutivo. Um conjunto de normas e procedimentos que, manejados pelo homem de alma sensível, garantem-lhe a condição de espaço de produção de beleza aos nossos sentidos. Fica claro, portanto, que os produtos artísticos recebem, assim, dos seres obtusos, a aura de obras do espírito.
Já o esporte, por outro lado – e o futebol é um esporte, garantem os obtusos -, é, no máximo, por assim dizer, o reduto de atuação do corpo. E um corpo bem treinado – garantem ainda os obtusos - pode fazer, com ou sem uma bola, as mais despirocadas acrobacias. Vê-se, então, que a atuação da alma, neste espaço especificamente corporal que é o esporte, ficaria um tanto deslocada ou mesmo relegada a um segundo plano. Pois eu lhes afirmo com todas as letras que no futebol age mais o espírito do que o corpo. Pelo menos no autêntico futebol brasileiro, bem entendido!
Reflitamos juntos com algumas questões. A inspiração não é um dos mais autênticos componentes artísticos? É. Pois não há arte – ou esporte, vá lá! – em que a inspiração não seja tão essencial como no futebol. O trabalho com a forma e o zelo pelo conteúdo não são igualmente genuínos elementos artísticos? Eu respondo: são. Pois não há preocupação maior com a forma – veja-se os componentes táticos e estratégicos de uma partida de futebol bem jogada – do que num jogo de futebol. A criatividade - o instante irrepetível, o insight, o improviso – não é igualmente item de valorização da arte? Pois é ela que, no futebol, faz a diferença do simples jogador para o grande gênio, aquele que faz a diferença. Assim como na arte.
Também o equilíbrio na composição - só para encerrar aqui a enumeração dos infindáveis itens artísticos -, é elemento indispensável tanto na elaboração individual das jogadas como no conjunto de uma partida de bom futebol, para o que concorrem todos os jogadores em campo. E aqui chegamos ao que nos propomos desde o início: saudar, com a efêmera mas sincera lembrança de uma crônica, a passagem pelo futebol brasileiro de um dos seus mais autênticos e geniais artistas. Refiro-me ao jogador Raí, do São Paulo Futebol Clube, que, após participar dessa primeira Copa dos Campeões aqui em João Pessoa e em Maceió, promete abandonar de vez o futebol como jogador profissional.
Raí Souza Vieira de Oliveira (15/5/1965), chegou ao futebol como o desconhecido irmão do doutor Sócrates, o genial craque corintiano que pontificou numa das maiores seleções de futebol que o Brasil já teve: o escrete da Copa de 1982, na Itália. Assim como o irmão, veio para a capital paulista oriundo do Botafogo de Ribeirão Preto, sua cidade natal, onde iniciou sua carreira. Viera transferido para a Ponte Preta de Campinas de onde pulou para o clube que revelaria seu talento ao mundo: o São Paulo Futebol Clube de onde só saiu para o Paris Sant-Germain da França, retornando ao Morumbi em 1998.
No São Paulo Raí foi um pouco de tudo vindo a tornar-se, ao longo de nove anos em que jogou pelo time, o símbolo incontestável de um clube que ostenta em sua galeria de craques nomes como Gérson, Pedro Rocha, Müller, Oscar, Cerezzo, Mauro, Bellini, Mário Sérgio, Denilson, entre outros, além, é claro, do genial centroavante Leônidas da Silva, o lendário diamante negro. Em relação a títulos, Raí ganhou quase todos dos que participou como líder maior do São Paulo. Foram um título mundial em 1992 – em que marcou os dois gols da final em Tóquio contra o poderoso Barcelona - ; duas Taças Libertadores da América (93 e 94); um campeonato brasileiro (o de 1991); e seis títulos de campeão paulista: os de 1987, ano em que chegou ao clube, e mais 89, 91, 92, 98, e o deste ano dois mil.
Mas eis que, proezas à parte, encontro com o velho ídolo por duas vezes, nas minhas andanças de profissional de imprensa ou como simples e anônimo torcedor: num jogo pela Copa do Brasil contra o América de Natal, aonde fui cumprir a promessa de levar meu filho para ver pela primeira vez o seu São Paulo (e o seu ídolo maior) jogar e agora aqui, em João Pessoa, no treino para o segundo jogo do time pela Copa dos Campeões contra o Vitória da Bahia. Em ambas as ocasiões, Raí comprovou, também fora de campo, ser o que todos nós comprovamos sê-lo dentro das quatro linhas. Um sujeito educado, finíssimo, no trato com as pessoas. Assim como com a bola. Um verdadeiro artista na acepção da palavra. Aquele homem que faz sua arte tocar o coração do seu semelhante.
Vê o leitor que o tom dessas linhas é já de despedida e, portanto, de irremediável nostalgia. É que quem viu o Raí jogar dificilmente se acostumará com a falta de estilo, a falta de delicadeza no trato com a bola ou com os companheiros, a truculência mesmo que impera no futebol moderno. Para Raí, a bola era uma espécie de amante arredia a quem se deve seduzir com arte e estilo. A quem não se deve poupar mimos ou badulaques, loucas promessas e carícias intempestivas. Os companheiros – sim, porque Raí não tinha adversários, tinha companheiros – compunham para ele o cenário indispensável desse intricado palco de paixões humanas que é o futebol. E Raí jogou em João Pessoa para nós paraibanos. Ao lado do nosso Marcelinho, que acalentou como um pai guia um filho a caminhos dantes navegados, Raí foi artista mais do que tudo. No Almeidão, com a bola nos pés, desenhou poemas no ar e traçou com linhas geométricas o difícil caminho das vitórias; regeu, como um maestro, a cadenciada e doce música futebolística do seu São Paulo e, num breve instante de condensação – típico da grande arte – transfigurou-se no fúlgido e eterno gesto de um adeus.

Jornal A União 16.07.2000

*Sport 3x1 São Paulo. Neste Jogo, pelas semi-finais da I Copa dos Campeões, realizado em 22/07/2000, no Almeidão, João Pessoa, Raí fez sua despedida como jogador profissional. Raí marcou 127 gols pelo São Paulo em 372 partidas disputadas pelo clube.
Foto de Antônio Gaudério

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