O futebol como um fenômeno da cultura brasileira

As coisas só acontecem por acaso, necessidade ou vontade nossa! Epicuro - filósofo.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Brindemos aos poetas da latinha


Nobilíssimo leitor, tomemos, para efeito dessa crônica, o termo lata como sinônimo de microfone, o instrumento técnico com o qual os locutores esportivos trabalham no incessante envio de cargas e sobrecargas de emoções várias ao coração do torcedor, durante as empolgantes narrações dos jogos de futebol por esse Brasil afora. Aliás, é assim mesmo que, na gíria do meio, eles se referem carinhosamente ao seu instrumento de trabalho.
Tomemos também, ainda para efeito dessa crônica, o termo poeta como, no dizer do vate pantaneiro Manoel de Barros, “indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu; espécie de vasadouro para contradições; Sabiá com trevas; sujeito inviável: aberto aos desentendimentos como um Rosto”. E tomemos também, ainda para efeito do alinhavado nostálgico que se desenrolará doravante, a palavra “poesia” como – sempre no dizer do grande Manoel de Barros: “raiz de água larga no rosto da noite; produto de uma pessoa inclinada a antro; remanso que um riacho faz sob o caule da manhã; espécie de resta espantada que sai pelas frinchas de um homem”. Pronto, tem aí o leitor o preâmbulo mais que adequado para o tema de que se vai tratar adiante.
É que na quinta-feira da semana passada, dia 25 de janeiro, data em que o Botafogo da Paraíba enfrentou – e empatou com o América de Natal pelo placar de 1 a 1, no estádio Machadão, pelo Campeonato do Nordeste –, a Rádio Tabajara da Paraíba, “a emissora oficial do esporte no Estado”, completava 64 anos de uma história gloriosa e feliz. E diante de tão importante acontecimento para a história da imprensa da Paraíba, notadamente a imprensa esportiva da qual honrosamente faço parte, o que fez o cronista para marcar (ao menos na face efêmera das folhas), tão relevante efeméride, como diriam os antigos confrades da latinha? Não fez nada. Mas como há sempre tempo para concertarmos nosso erros, eis o poeta menor a digredir sobre os poetas maiores. Sim, porque os locutores esportivos sempre foram pra mim, um sujeito iniciado no futebol através das mágicas ondas do rádio, uma espécie divina de vates alados.
Assim é que, garoto do interior (no sentido literal e metafórico), eu me deliciava, nos idos da minha infância, ao ouvir, através das vozes tão líricas quanto dramáticas de uma plêiade de locutores geniais, as glórias e os reveses dos meus dois clubes de futebol do coração: O Botafogo da Paraíba e o Fluminense do Rio de Janeiro.
Relembro isso aqui, caro torcedor – à guisa de homenagem a todos os locutores esportivos do País – porque não há futebol sem a presença do rádio. As histórias do rádio e do futebol no Brasil sempre andaram juntas. A fase de profissionalização do futebol brasileiro, a partir da década de 30, em grande parte impulsionada pelas idéias do jornalista Mário Filho, o irmão do cronista Nelson Rodrigues, coincide com a primeira transmissão lance-por-lance de um jogo de futebol: trata-se da irradiação feita pelo locutor pioneiro, Nicolau Tuma, da Rádio Educadora de São Paulo, do jogo entre as seleções paulista e paranaense. A transmissão foi feita no dia 19 de julho de 1931 e esta, por questões óbvias, ficou sendo a data de nascimento do radiojornalismo esportivo brasileiro.
Mas deixemos de lado os aspectos históricos do tema e desenboquemos de vez na poesia desses artistas fenomenais. Vários são os nomes de peso desses menestréis da latinha. Na década de trinta destacam-se os nomes do já citado Nicolau Tuma em São Paulo e Oduvaldo Cozzi, no Rio de Janeiro, este famoso pelo seu estilo intrépido, de dicção perfeita na descrição dos lances, como se estivesse transmitindo um drama, coisa que, afinal de contas, o futebol realmente o é. É do Rio de Janeiro também a figura de Amador Santos, da Rádio Clube do Brasil, poeta sóbrio e de voz pausada, que irradiava um jogo como se estivesse transmitindo uma ópera. Proibida pelos dirigentes dos clubes cariocas as transmissões radiofônicas de jogos de futebol, Amador Santos não se fazia de rogado: subia nos telhados vizinhos, nos postes próximos ao campo, escondia-se atrás dos muros portando seu indefectível binóculo mas não deixava o torcedor sem a transmissão do jogo do seu time do coração.
Pois foi o coração que me levou ao universo poético do rádio esportivo. Depois da atuação apaixonada do flamenguista doente Ary Barroso, que gritava gol com uma gaita improvisada, fazendo já então na área a ponte formal entre música e poesia, quem não lembra de nomes como Gagliano Neto, quem primeiro introduziu o grito de goooool prolongado entre os seus pares? Foram estas figuras, entre outras, que inundaram de emoção o torcedor brasileiro que acompanhou os dois primeiros títulos mundiais da nossa Seleção de futebol, nas décadas de 50 e 60, já que a primeira transmissão de uma Copa do Mundo pela televisão só veio acontecer em 1970.
Foi justamente por essa época que iniciei meu contato com a fase áurea (pelo menos para mim) das transmissões esportivas pelo rádio. Eu me enchia de uma espécie de enleio lírico ao ouvir a voz potente, dramática e cheia de suspense da narração de um Jorge Cury, da Rádio Globo do Rio de Janeiro. Um gol de Zico, pra mim, nessa época de um Flamengo densamente artístico(fins de 70 e todos os anos 80), nunca era apenas um gol de Zico: era também um gol de Jorge Cury, prolongado poeticamente nas vozes de um Waldir Amaral, de um Doalcey Camargo, de um José Carlos Araújo. Explica-se, portanto, porque eu me sentia cada vez mais Fluminense ao ouvir os estalos azeitados da “máquina tricolor” na voz de tão extraordinários poetas do rádio.
E azeitados eram também os seus bordões pelos quais se distinguiam os diferentes e inconfundíveis estilos “métricos” de cada um. Uma vinheta sonora musicalmente chamava: “Waldir Amaral!”. – “Deixa comigo, que eu deixo com o Galinho de Quintino, que adentra a área perigosa e chuta: goool de Zico. Indivíduo competente essse Zico!”, ele respondia. Ou, nos mesmos termos: “José Carlos Araújo! – “Voltei, garotinho. Lá vai o Flusão do Chico Buarque de Holanda pelas quebradas da direita, Rivelino troca figurinhas com Doval, recebe na frente, estica o elástico para cima de Carpeggiani e chuta uma bomba: gooolão, gooolão, gooolão!”. E assim vai.
Entre os paraibanos, eu me deliciava com a imagética inventiva de Marcos Aurélio que, na Rádio Tabajara de minha época de torcedor interiorano, abria a jornada esportiva assim: “Olhe para o seu rádio e veja um campo de futebol! Abrem-se as cortinas e começa a história de Botafogo e Treze na Beleza do Cristo!”. Ou com a sobriedade e ética inquebrantáveis de um Eudes Moacir Toscano. Ainda hoje me delicio com a velocidade coerente e contemporânea de um Jorge Silva, ou com a vibração ponderada de um João Camurça, que ao narrar um gol assim o conclui: “Pode vibrar!”.
Pois, nobilíssimo torcedor que escuta rádio, esses homens são ou não são indivíduos que enxergam semente germinar e engolem céu; espécies de vasadouros para contradições; Sabiás com trevas; sujeitos abertos aos desentendimentos como um Rosto? São sim, e porque são poetas, os poetas da latinha, rendo-lhes aqui minha homenagem nesse contexto de aniversário da sexagenária Rádio Tabajara da Paraíba.
Foto de Ed Viggiani

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