O futebol como um fenômeno da cultura brasileira

As coisas só acontecem por acaso, necessidade ou vontade nossa! Epicuro - filósofo.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

De futebol e de mulheres


O futebol é mesmo um jogo repleto de encantos e de mistérios. Talvez por isso, por rivalizar, em termos de encantos e de mistérios insondáveis, com o universo feminino, é que as mulheres nutrem pelo futebol uma relação baseada na mais tensa polaridade: umas o amam, outras verdadeiramente o detestam. E cada uma à sua maneira. Assim, há as que vêem no futebol a mais lídima expressão da alma lúdica de sua gente. Estas dedicam ao clube do coração (o time escolhido com os mesmos critérios que utilizou na escolha do homem de suas vidas) aquele amor idêntico ao que devota ao ser amado.
Mas há, também, as que vêem no futebol justamente o contrário. Ou seja: um jogo odiável e sem o menor sentido. Um jogo em que não entendem “como é que um monte de marmanjos ficam quase duas horas a correr atrás de uma bola quando poderiam muito bem estarem flertando, cortejando, namorando, amando, enfim, suas mulheres”.
Pois bem! Como se vê, o futebol tem mais este inapelável charme: o dom de dividir o coração das mulheres.
À parte essa abordagem, digamos, meramente emocional das mulheres para com o futebol, a relação de admiração e repulsa que elas dedicam a esse jogo merece algumas reflexões. Confesso que já gastei muitos dos meus poucos neurônios tentando compreender por que o futebol fascina tanto o universo masculino e desagrada tanto (claro que a situação já mudou bastante) à grande parte das mulheres.
Do tanto que li sobre o assunto, restou-me ainda um amontoado de dúvidas que não me esclarece inteiramente a questão, mas, devo confessar, retive comigo uma certeza quase pueril para explicar o porquê do gênero masculino gostar tanto de futebol. A coisa é bastante simples: o homem gosta de futebol – tanto de jogar como de apreciá-lo como espetáculo – porque ao se esbaldar no jogo da bola, o homem volta a ser criança sem deixar de ser adulto. E mais: ele realiza simbolicamente com a bola, em termos ritualísticos (o mundo é uma esfera), o domínio que gostaria de ter sobre a natureza. No mais o homem é sozinho, é desprotegido, é incompleto, é absurdo, o homem é um abismo...
Ademais, o futebol possui ainda para os homens um atributo importantíssimo: constitui-se num dos mais eficazes meios de sociabilidade. Um jogo de futebol, seja a mais reles pelada de fim de semana ou o mais importante dos clássicos nacionais, não é apenas um jogo. Ele é antes, é durante e é depois. Talvez seja exatamente essa característica do futebol – ser um fator da sociabilidade masculina - que incuta nas mulheres um certo desprezo por tal esporte. Afinal, muitas são as mulheres que se consideram preteridas ante a pelada ou o jogo que lhe roubou o marido, o namorado, a companhia, o amante, enfim.
E quem já testemunhou uma mulher (digo uma mulher feita, adulta) se sentindo criança outra vez ao brincar com uma boneca? Pois um homem com uma bola nos pés é a mais pura e inocente criança a brincar com seus sonhos e abismos. E quem igualmente já viu as mulheres se juntarem em volta de uma mesa de bar para, após uma sessão de brincadeiras femininas, discutirem, com a mais empedernida convicção, sobre este ou aquele “lance” genial? Pois o homem faz isso com o seu mágico universo da bola. E faz mais.
Confira-se, por exemplo, as sutis conjecturas do grande jogador do São Paulo Futebol Clube da década de quarenta, Ieso Amalfi, sobre as relações entre a bola (leia-se o futebol) e as mulheres. O centroavante Ieso Amalfi fazia parte do maior time do São Paulo de todos os tempos, aquela orquestra de jogar futebol em que pontificavam nomes como Bauer, Rui, Noronha, Sastre, Remo, Luisinho e o maior de todos: Leônidas da Silva, o diamante negro.
O relato de Ieso Amalfi nos chega pelas mãos do colega jornalista Miguel Arcanjo Terra, autor do livro “Futebol que lava a alma”, publicado em 1998 pela Editora Rideel Ltda. Acompanhemos, pois, esse seu jogo maroto:
“Uma mulher e uma bola de futebol – falou Ieso – trazem plena confiança de que você existe. Quando bem próximas e dominadas, a sensação é de poder. A alma deixa de ser pequena.
Ah, uma mulher ou uma bola distante... A sensação de abandono aperta e sufoca.
Como ter uma bola de futebol ou uma mulher sempre aos pés?
Ieso sempre se deu bem com as duas, talvez um pouco mais com as mulheres. E ensinou que jamais se deve correr desesperadamente atrás de uma bola. Uma mulher é capaz de lances com efeitos imprevisíveis, quando sente que a buscam em aflição.
Quando uma bola ou uma mulher estiver em jogo, erga a cabeça, aconselhava Ieso, e estenda seu olhar para a metade inteira do mundo que fica à sua frente. Uma espécie de olhar vago, muito vago, onde nenhuma das duas se sente como foco principal. Nessa hora, a bola chega. Sem feito, Meiga. Mansa. Uma mulher não gosta de passar despercebida no meio do campo. Instintivamente, ele teme o desinteresse dos homens. Ela sabe que o tempo é inexorável. Toda bola fica murcha, um dia. Assim, ela vem a seus pés, humilde. Nessa hora, não chute, mas afague. Nem tenha a pretensão de que ela fique ali para sempre.
Com o olhar aberto para a metade inteira do mundo, pressinta as aproximações. Quem for do seu time raramente vai lhe tomar a mulher. Mas, não confie muito. Lembre-se de que um dos 10 maiores pecados dos homens é desejar a bola do próximo.
E se ela for manhosa?
Ieso aconselhava a tentar o domínio, antes de dar um bico. As vezes, é som um capricho de mulher. Permaneça frio, até que ela se canse e mansamente se entregue. Nessa hora, é permitido até pisar na bola.
Não grite nunca com uma bola que ela não ouve, continuava Ieso. Nem fale demais. As mulheres têm deixado todos os tagarelas e gritadores no meio de campo, a babar na grama.
Ouça sempre o que uma mulher tem a dizer. E se lembrava de Heleno de Freitas, que de tanto afagar sua loucura, chutou para fora a genialidade. Numa tarde de treino, ele foi visto a ouvir uma bola. Alguém se aproximou. Ele pediu silêncio. Com a bola encostada à orelha, continuou mudo como uma estátua grega. Chegou mais gente. Jogadores do Botafogo, técnico, massagista, médico, roupeiro, diretores, todos preocupados com a cabeça de Heleno de Freitas. Ele exigia silêncio. A situação já estava incômoda, quando, delicadamente, Heleno desceu a bola ao chão, olhou em volta e disse: ela estava contando todos os maus tratos que tem sofrido no time do Botafogo. Ieso completou: ouça, uma mulher, de vez em quando.
Rindo, ele disse que é bobagem ligar para a torcida quando se perde a bola. É coisa da vida. Não deu mais para segurar, perdeu o controle, tomaram sem que você percebesse?
Relaxe e espere a próxima. Sempre vem. E às vezes muito melhor do que a que se perdeu. Bola, a gente encontra em toda a parte".
Ieso Amalfi, um sábio.
Foto de Walter Firmo

Um comentário:

Anônimo disse...

Salve Poeta. Gostei muito do artigo. Parabéns pra vc e principalmente para os leitores que poderão desfrutar de espaço onde se fala de futebol de forma lírica.
Um abraço, Damião de Lima