O futebol como um fenômeno da cultura brasileira

As coisas só acontecem por acaso, necessidade ou vontade nossa! Epicuro - filósofo.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Números são apenas números



Comecemos este domingo, caro torcedor, falando de números. E porque números? Será porque o cronista amanheceu tomado de veia filosófica e resolveu compartilhar com seu leitor a idéia eleática e absoluta, contida na máxima de Pitágoras, de que tudo são números? Ou será porque, reconhecendo uma ponta de verdade no pensamento pitagórico, decidiu, a par de uma série de observações de fenômenos típicos do mundo moderno, imprimir nessa conversa dominical sobre futebol a sua repulsa a uma noção errônea de que os números, por si só, dizem tudo? Ambas as coisa, caríssimo torcedor.
É que não bastassem os números ditarem cotidianamente os passos de nossas vidas em termos de sua expressão econômica ou socionométrica – a taxa de inflação do mês é tanto, o preço do pão subiu tanto, o índice Dow Jones da bolsa de Nova York manteve-se estável no patamar de tanto – eis a realidade fria dos números a adentrar, também, o mundo apaixonante e quente do futebol. E como isso aconteceu ou vem acontecendo?
O leitor mais bem informado deve se lembrar de uma manchete que ocupou todos os bons jornais do país na semana que passou. Era assim, com sutis variações editoriais, o cerne do seu conteúdo: Estados Unidos são o país do futebol, diz a Fifa. Ora, a verdade que pretensamente contém esta informação, todo leitor brasileiro sabe, é risível quando não mentirosa. E em que baseava-se a tal notícia? Baseava-se numa pesquisa da Fifa para mapear, em termos numéricos, a prática do futebol em todo o planeta. Mais uma vez a Fifa perdeu, ao anunciar o tal resultado da citada pesquisa, uma sonora oportunidade de ficar calada. A exemplo do que acontecera quando daquela outra famigerada pesquisa que perguntava pela Internet quem deveria ser içado à condição do maior jogador do mundo, se Pelé ou Maradona, lembram?
Mas vamos aos resultados da pesquisa atual da Fifa, na sua expressão rigorosamente numérica: Os Estados Unidos são o país em que seus habitantes mais praticam o futebol: 18 milhões de pessoas jogam bola na América. O segundo país do mundo a ostentar o maior índice de praticantes do ludopédio (gosto dessa expressão: ludopédio) são, imaginem, a Indonésia. Na seqüência vem o México, com 7,4 milhões de futebolistas, e a China, que é realmente uma potência no futebol feminino, com 7,2 milhões de apreciadores ativos da arte da bola. Só então, na quinta colocação, é quem vem o Brasil, com aproximadamente 7 milhões de praticantes do futebol. Acreditam?
Certa vez, numa outra crônica aqui impressa, falava eu, à guisa de explicação para um tipo de emoção que todo torcedor experimenta ao ver a derrota iminente do seu time se esvair sobre as últimas voltas do ponteiro do cronômetro do juiz, que a razão humana, embora se explique por várias teorias psicológicas e filosóficas, continua a ter lá os seus insondáveis mistérios. Assim, compulsando um pouco das minhas leituras a respeito do tema, arrolava eu diferenciados atributos que configuraria a razão humana segundo sua forma de expressão: haveria, por exemplo, uma razão cativa, uma razão comunicativa, uma razão estética, uma razão instrumental e, embora amplamente expressa pelos inúmeros torcedores do mundo do futebol quando de suas discussões sobre o tema, mas nunca levada à sério pelos estudiosos do comportamento humano, uma razão estritamente futebolística.
Eis que a divulgação, na semana passada, da tal pesquisa da Fifa me serviu como mote para algumas considerações a respeito tanto da chamada razão instrumental quanto da por mim aventada razão futebolística, uma vez que, neste episódio, ambas se abraçam indissoluvelmente.
É fato mais ou menos estabelecido no mundo da imprensa esportiva a tendência e o hábito, como sempre copiada dos americanos, de se explicar as partidas de futebol em termos numéricos. É para isso que existem os “scouts” amplamente comentados nos intervalos dos jogos em que tal time cometeu tantas faltas, perpetrou tantos desarmes, teve tantos minutos de posse de bola, chutou tantas vezes na meta do adversário. A partida, assim, com toda a sua riqueza de variações e surpresa, fica resumida a sua expressão numérica que, no mais das vezes, não explica nada.
Tal concepção do fenômeno esportivo, caro torcedor, não é ingênua nem desinteressada. Ele expressa a visão capitalista e instrumental dos fenômenos sociais para a qual tudo tem que ser medido e aferido em função dos seus resultados. Lembro, neste contexto, a despedida melancólica de um dos grandes jogadores da história da Seleção Brasileira, o volante Dunga, que revelou-se no Internacional de Porto Alegre e que após ser tetra-campeão do mundo, retornou ao seu clube e foi dispensado (repentinamente proibido de treinar sem ser avisado) por uma alegada deficiência técnica. É que os preparadores físicos do clube tinham monitorado o desempenho físico do atleta e descobriram, em suas frias baterias de números, que o volante estava com um “índice de desarmes” muito abaixo da média para um jogador da sua idade.
Essa razão instrumental aplicada ao futebol – tanto quanto a qualquer outro setor da vida – reduz os atos e as potencialidades humanas à realidade fria dos números sem considerar fatores outros também relevantes na avaliação das nossa atividades. Imaginem tal lógica aplicada a um Garrincha! Estaria lá na papeleta dos comentaristas: o Botafogo teve 75% de posse de bola na partida contra o Flamengo e Garrincha monopolizou as ações do jogo ao reter a bola. Do ponto de vista estritamente numérico e instrumental, o comentário tem sua razão de ser. Entretanto, traduz uma verdade e uma razão apenas parcial: Garrincha, com seus dribles geniais, que, afinal fazem a beleza artística do futebol, poderia muito bem, como era do seu feitio, ter desmoralizado os adversários e contribuído, sem que os números pudessem expressá-lo, para a vitória acachapante do Botafogo.
E o pior é que essa lógica instrumental da ditadura dos números solapa todos os outros setores da nossa vida, além, é claro, de também estar incrustada nos nossos momentos de lazer. Veja-se a política, a economia e a administração, por exemplo. No educação o que conta é o número de alunos matriculados por ano e não as condições pedagógicas e até física das escolas, os salários dos professores, a prontidão da merenda escolar. Na economia o que interessa é que “os índices de inflação estão estáveis” não importando o desemprego derivado deles. Na política o principal é ter seguro, em termos numéricos, os interesses da maioria sem que os das minorias sejam levados em conta.
É por essas e outras que desconfio sempre das visões de mundo – ou sobre qualquer outro aspecto dele – baseadas apenas na sua versão numérica. Ou o torcedor acha que o Brasil, que é o único país a ganhar quatro vezes a Copa do Mundo e ser vice em mais duas, é realmente, com seus hoje 170 milhões de apaixonados por futebol, o quinto país do mundo a praticar esse esporte? Não estaria esses números da Fifa, que apontam os Estados Unidos como sendo o país onde mais se pratica o futebol no mundo, a sinalizar para uma abertura de mercado na América para os negócios sempre lucrativos do futebol?
Do contrário, é melhor se acreditar nos números e propor que a Austrália tenha hoje o melhor futebol do planeta. Afinal, ela não acaba de quebrar dois recordes simultâneos no universo do futebol: o de maior goleada em jogos oficiais da Fifa – ganhou de 31 a 0 de Samoa pelas eliminatórias da Oceania – e do maior número de gols marcados numa só partida – seu goleador marcou 13 tentos no mesmo jogo? Haja números!
Foto de Tiago Santana

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