O futebol como um fenômeno da cultura brasileira

As coisas só acontecem por acaso, necessidade ou vontade nossa! Epicuro - filósofo.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

A cidade e a roça – lá do alambrado


Há um escritor polonês, com nacionalidade inglesa – língua em que escreveu todos os seus livros -, já referido por mim em crônica anterior, conhecido como Joseph Conrad, que tomou como tema recorrente da sua obra uma contingência singular da existência humana: a impossibilidade que temos de fugir dos problemas inerentes a nossa condição. Seja de um vizinho impertinente, de um chato de galocha, de uma ex-mulher ciumenta ou de um importuno vendedor de picolé caseiro, o fato é que por mais que tentemos, por mais que nos escondamos do mundo, fugindo para uma ilha deserta ou refugiando-nos na solidão do recolhimento, eis o mundo a nos caçar para nos envolver na sua inexorável teia de problemas.
Assim – e essa é a lição maior da obra de Conrad! –, é impossível ao homem não se envolver ou dar de cara mais cedo ou mais tarde com os percalços da sua pobre condição. E quando esse homem é cronista e ainda por cima de futebol, ofício um tanto áspero e também sujeito às intempéries que vez por outra acometem o cronista propriamente dito, fica difícil acordar em um domingo alvissareiro como este e não ter assunto para brindar o leitor com a crônica costumeira. Ou seja, todo esse intróito acima unicamente para dizer ao leitor que por mais preparado e precavido que seja o escriba das coisas cotidianas haverá um dia que lhe faltará o que dizer, um dia que a terra fugirá dos seus pés, que o mundo desabará sob a sua pena. E então, o que fazer? É a pergunta que o atormentará o dia inteiro.
Soube, a propósito, por uma dessas leituras de apoio, que nos tempos de Eça de Queiroz, quando o cronista estava sem assunto, punha-se a descompor o bei de Túnis. Assim, sabendo-se que em Túnis há sempre um bei e que o dito cujo está a quilômetros de distância, tanto física quanto culturalmente, era delicioso para o autor de A cidade e as serras ficar xingando, numa crônica de domingo, o bei de Túnis sob a certeza da impunidade. Estaria salva, assim, dessa maneira um tanto heterodoxa, a costumeira conversa literária com os seus leitores.
Mas eu não quero salvar aqui a minha pele com a fórmula do bei de Túnis. Procurei solução bem mais caseira. Fui buscar num livro de contos recém lançado em João Pessoa a resolução para a minha súbita falta de assunto neste domingo. Não que o citado livro (Inventário de pequenas paixões – Editora Manufatura, João Pessoa, 2000), do meu amigo Geraldo Maciel, que reputo o maior contista paraibano da nossa atualidade literária, apenas mereça ser comentado num contexto de falta de assunto. Muito pelo contrário. Afianço-lhes, com a leitura ainda incompleta que estou fazendo da obra, que trata-se de um dos maiores livros de contos já escritos na história literária do nosso Estado.
Trago-o, isto sim, aqui para a nossa crônica costumeira, pelo fato do talentoso contista ter incluído em seu novo livro um conto magistral tematizando o futebol. E tematizando-o, como é precípuo da visão literária sobre as coisas cotidianas, pelo ângulo particular sob o qual a cidade e a roça enxergam diferentemente o jogo mais popular do planeta. Dessa visão diversa, mas complementar, digamos, sobre o fenômeno do futebol, é que os personagens-jogadores se nutrem para mergulhar na delícia dramática que é a disputa de uma partida de futebol que envolva o campo rural e a cidade urbana dentro do mesmo embate.
O conto de Geraldo Maciel, intitulado Lá do alambrado, tem sua sustentação dramática e lírica a partir da visão telúrica, ingênua, romântica, do jogo, que tem o personagem protagonista, José Eduardo, ele mesmo um roceiro e artesão fabricador da bola que quer perfeita, “da esfera que ele sabia existir, com a mesma obstinação dos alquimistas”. Contrapondo-se a esta visão telúrica do futebol, visão que liga a prática do esporte à atividade de roceiro de José Eduardo e seus companheiros, o time do Vasco da cidade mais próxima da Troncha (a roça onde trabalhava e vivia o protagonista), é convidado a fazer o jogo de estréia do padrão de camisas novinho que a equipe da troncha ganhara de presente.
Mais do que uma disputa futebolística, a partida entre Vasco e a Internazionale da Troncha transforma-se, pelas mãos do hábil narrador de Geraldo Maciel, na mais autêntica e lírica peleja entre a experiência empírica do futebol praticado na roça e a já burilada e “científica” abordagem estilística emprestada ao esporte pelas exigências da cidade. Ao meio de tudo, as figuras emblemáticas de José Eduardo e seus companheiros camponeses subitamente confrontados, por intermédio do futebol, com os limites da própria inocência geográfica e humana. O resultado desse embate? Confira aí, através do próprio narrador, em momentos representativos da peleja mais que futebolística: literária, na verdadeira acepção do termo.
“(...) Começa o jogo. O Vasco dá a saída. Durante os cinco primeiros minutos, a Internazionale não pegou na bola. O Vasco trocava passes tentando atrair a Internazionale, abrir espaços e lançar um molecote que, pelo que sabia, era veloz e driblador. Na primeira oportunidade, o lançamento foi feito e o molecote escorregou pela esquerda sem tomar conhecimento de Chanha, que correu tentando alcançá-lo. Veio o cruzamento na área, e o centroavante quis dançar na frente de Zezebu. Coitado! Sentiu-se atropelado por um rinoceronte, por uma jamanta carregada, mas tudo dentro das regras e sem que o juiz visse qualquer coisa que ferisse a ética desportiva”.
“A bola chegou aos pés de Zefininho, e ele estranhou alguma coisa. Não sentiu nenhuma intimidade com ela. Tentou um lançamento para José Eduardo, mas o chute saiu torto, quase um presente para os adversários que, com quatro passes na intermediária, leva o Vasco ao primeiro gol.(...)”.
“Quando terminou o primeiro tempo, a Internazionale perdia por três a zero. E só não perdia por mais devido a Zezebu, que fez de sua grande área uma espécie de forte Álamo”.
“Numa dividida, Zezebu estourou a bola oficial. No intervalo para a troca da bola, Eduardo, como capitão do time, manda todo mundo tirar as chuteiras, e o jogo recomeça com o campo já bastante esburacado, – e com o capotão de Eduardo. Apesar dos dedos em labaredas, a Internazionale retoma o mando de campo. Agora era a arte, o artesanato, a geometria não euclidiana quem mandava. Zefininho bailou como um deus, fazendo sorrir Leônidas e Heleno, lá no alambrado. José Eduardo destroçou a defesa adversária e fez três gols. Mas não havia mais tempo. A Internazionale salvou a honra da Troncha com o empate”.
“Eduardo pegou a taça e, como gentileza, presenteou-a ao Vasco. No calor da comemoração pelo desastre evitado, reuniu seu esquadrão, nos modos daqueles gritos de guerra na boca dos túneis, e deu a palavra de ordem:
– Amanhã bem cedo, vamos fazer a roça no campo, e de hoje em diante o capotão é a nossa bola oficial!”
“O resto do time, talvez querendo exorcizar a derrota que passou tão perto, deu um grito que assustou as bandeirolas:
– Urra!”
Tudo isso, reitere-se, sob os olhos atentos de Leônidas da Silva e Heleno de Freitas, que assistiam à correria lá do alambrado de nuvens onde jogam para a eternidade...
Foto de Tibico Brasil

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