O futebol como um fenômeno da cultura brasileira

As coisas só acontecem por acaso, necessidade ou vontade nossa! Epicuro - filósofo.

domingo, 5 de maio de 2013

Futebol e literatura_ANÁLISE


A torre e o apagão

 
Edônio Alves
 

Na coluna da semana passada (ver aqui) tratei da relação do futebol com a literatura para explicar a importância do pênalti no futebol e como os escritores utilizam esse momento-limite (a cobrança da penalidade máxima no jogo) como uma metáfora poderosíssima para debaterem as situações também limites da condição humana nas suas manifestações literárias. Volto ao tema desta relação hoje para apresentar outro tópico literário muito usado nas narrativas de ficção que tomam o futebol como matéria de fatura: a criação de personagens fictícios como estratagema para se abordar o lado intangível do futebol, a sua face imponderável; o universo dos sortilégios e do inexplicável deste jogo magnífico.

Faço isso, com efeito, impulsionado pelas próprias percepções dos torcedores que flagram essa dimensão do futebol nada racionalizável. É que vi um texto curioso de um torcedor postado num desses blogs da internet em que ele tentava explicar a esquisita derrota do Botafogo da Paraíba para o Campinense pelo placar de 4 a 1, ocorrida na décima rodada do Campeonato Paraibano. A goleada se deu em circunstâncias também esquisitas em que uma das torres de iluminação do estádio Almeidão deu defeito e não pôde ser acesa, o que demandou a anuência dos presidentes dos dois clubes para que a partida fosse realizada, assim mesmo, na escuridão parcial do gramado.

Ademais, no jogo em si, outra circunstância esquisita foi o Botafogo levar quatro gols por falhas consecutivas da sua defesa embora tenha dominado a partida em quase sua totalidade. Daí, ficou a questão para o torcedor: como explicar tal derrota? A solução encontrada, penso eu, foi a mesma de que os escritores de ficção lançam mão quando se deparam com problemas assim, no futebol.

O dramaturgo e cronista de futebol, Nelson Rodrigues, foi o primeiro escritor a dar estatuto literário definitivo a esse estratagema. Ele criou, entre outros, a figura (ou o personagem) que chamou de O Sobrenatural de Almeida, e sempre o utilizava nesses casos.

Mas, vamos às explicações do torcedor, referida acima. Diz ele, a certa altura, no seu blog: "Ôh raiva da gota!! Devo ter envelhecido no mínimo cinco anos de ontem pra hoje!!!! Caberia fácil uma ação de dano moral. Mas, já encontrei um responsável. Nada de colocar a culpa na zaga. Seria muito exigir um zagueiro estilo “Palhaço Ninja”, que ao mesmo tempo faça a torcida feliz e proteja a defesa. Nada de pedir a cabeça de Genivaldo, único “ídolo” sem títulos do futebol mundial. Nada de reclamar de Warley, que parecia, ontem, ter sido feito de laranja, pois tava só o bagaço. A culpa foi da Torre!!!!".

Pois bem. A figura do Sobrenatural de Almeida foi criada por Nelson Rodrigues precisamente para personificar e simbolizar o imponderável, as forças do acaso, ou para justificar a imprevisibilidade e a imprecisão que reinam no universo do jogo de futebol. Justamente por isso, tal figura recebe do escritor uma caracterização especialíssima. É, a princípio, uma figura "abominável", "tenebrosa", "cínica", e "manca". Sim, ela tem uma perna mais curta do que a outra. Contudo, mesmo assim, é capaz de interferir diretamente no resultado de um jogo de futebol.

Veja-se, a propósito, descrita por Nelson Rodrigues, a sua interferência num Fla-Flu, ocorrido outrora, no Rio de Janeiro. A conversa entre o personagem e o cronista se dá numa redação de jornal carioca, onde Nelson trabalhava. Depois dos cumprimentos de praxe, dá-se o seguinte diálogo:

"‘Tens visto a minha atuação?’ Ao mesmo tempo que fala, abana-se com a Revista do Rádio. Sinto que ele está vaidoso de não sei de que ignóbeis feitos. Tive a vontade quase irresistível de perguntar: ‘Assaltaste algum chauffer?’ Por delicadeza, esperei que o miserável fizesse a sua autopromoção. E, então, depois de limpar um pigarro, de estufar o peito magro, diz ele patético: ‘Eu venci o Fla-Flu! Eu!’ [...] ‘Ou não percebeste a minha influência no placar?’ Juntou gente em torno da minha mesa. Ao mesmo tempo, chegava o contínuo com dois cafezinhos na bandeja. E, então, mexendo o açúcar, o abjeto cidadão contou, para nosso espanto, a sua ação contra o Fluminense".

Penso eu, cá com os meus botões, eu mesmo que sou torcedor do Botafogo da Paraíba, que foi o Sobrenatural de Almeida que naquele jogo vestiu-se de torre de iluminação e causou aquele estrago na defesa do Belo. Não tem ninguém no mundo que me faça abandonar esta convicção.
 

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