A torre e o apagão
Edônio Alves
Na coluna da semana passada (ver aqui) tratei da relação do futebol com a
literatura para explicar a importância do pênalti no futebol e como os
escritores utilizam esse momento-limite (a cobrança da penalidade máxima no
jogo) como uma metáfora poderosíssima para debaterem as situações também
limites da condição humana nas suas manifestações literárias. Volto ao tema
desta relação hoje para apresentar outro tópico literário muito usado nas
narrativas de ficção que tomam o futebol como matéria de fatura: a criação de
personagens fictícios como estratagema para se abordar o lado intangível do
futebol, a sua face imponderável; o universo dos sortilégios e do inexplicável
deste jogo magnífico.
Faço isso, com efeito, impulsionado pelas próprias percepções dos
torcedores que flagram essa dimensão do futebol nada racionalizável. É que vi
um texto curioso de um torcedor postado num desses blogs da internet em que ele
tentava explicar a esquisita derrota do Botafogo da Paraíba para o Campinense
pelo placar de 4 a 1, ocorrida na décima rodada do Campeonato Paraibano. A
goleada se deu em circunstâncias também esquisitas em que uma das torres de
iluminação do estádio Almeidão deu defeito e não pôde ser acesa, o que demandou
a anuência dos presidentes dos dois clubes para que a partida fosse realizada,
assim mesmo, na escuridão parcial do gramado.
Ademais, no jogo em si, outra circunstância esquisita foi o Botafogo
levar quatro gols por falhas consecutivas da sua defesa embora tenha dominado a
partida em quase sua totalidade. Daí, ficou a questão para o torcedor: como
explicar tal derrota? A solução encontrada, penso eu, foi a mesma de que os
escritores de ficção lançam mão quando se deparam com problemas assim, no
futebol.
O dramaturgo e cronista de futebol, Nelson Rodrigues, foi o primeiro
escritor a dar estatuto literário definitivo a esse estratagema. Ele criou,
entre outros, a figura (ou o personagem) que chamou de O Sobrenatural de
Almeida, e sempre o utilizava nesses casos.
Mas, vamos às explicações do torcedor, referida acima. Diz ele, a certa
altura, no seu blog: "Ôh raiva da gota!! Devo ter envelhecido no mínimo
cinco anos de ontem pra hoje!!!! Caberia fácil uma ação de dano moral. Mas, já
encontrei um responsável. Nada de colocar a culpa na zaga. Seria muito exigir
um zagueiro estilo “Palhaço Ninja”, que ao mesmo tempo faça a torcida feliz e
proteja a defesa. Nada de pedir a cabeça de Genivaldo, único “ídolo” sem
títulos do futebol mundial. Nada de reclamar de Warley, que parecia, ontem, ter
sido feito de laranja, pois tava só o bagaço. A culpa foi da Torre!!!!".
Pois bem. A figura do Sobrenatural de Almeida foi criada por Nelson
Rodrigues precisamente para personificar
e simbolizar o imponderável, as forças do acaso, ou para justificar a
imprevisibilidade e a imprecisão que reinam no universo do jogo de futebol.
Justamente por isso, tal figura recebe do escritor uma caracterização
especialíssima. É, a princípio, uma figura "abominável",
"tenebrosa", "cínica", e "manca". Sim, ela tem
uma perna mais curta do que a outra. Contudo, mesmo assim, é capaz de
interferir diretamente no resultado de um jogo de futebol.
Veja-se, a propósito, descrita por
Nelson Rodrigues, a sua interferência num Fla-Flu, ocorrido outrora, no Rio de
Janeiro. A conversa entre o personagem e o cronista se dá numa redação de
jornal carioca, onde Nelson trabalhava. Depois dos cumprimentos de praxe, dá-se
o seguinte diálogo:
"‘Tens visto a minha atuação?’ Ao mesmo tempo que fala, abana-se com a
Revista do Rádio. Sinto que ele está vaidoso de não sei de que ignóbeis feitos.
Tive a vontade quase irresistível de perguntar: ‘Assaltaste algum chauffer?’
Por delicadeza, esperei que o miserável fizesse a sua autopromoção. E, então,
depois de limpar um pigarro, de estufar o peito magro, diz ele patético: ‘Eu
venci o Fla-Flu! Eu!’ [...] ‘Ou não percebeste a minha influência no placar?’
Juntou gente em torno da minha mesa. Ao mesmo tempo, chegava o contínuo com
dois cafezinhos na bandeja. E, então, mexendo o açúcar, o abjeto cidadão contou,
para nosso espanto, a sua ação contra o Fluminense".
Penso eu, cá com os meus botões, eu
mesmo que sou torcedor do Botafogo da Paraíba, que foi o Sobrenatural de
Almeida que naquele jogo vestiu-se de torre de iluminação e causou aquele
estrago na defesa do Belo. Não tem ninguém no mundo que me faça abandonar esta
convicção.
LER TAMBÉM AQUI: http://diariopb.com.br/a-torre-e-o-apagao/
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