O futebol como um fenômeno da cultura brasileira

As coisas só acontecem por acaso, necessidade ou vontade nossa! Epicuro - filósofo.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

1,2,3,4,5,6,7,8,9 10: Que vergooooonha!!!


Amigos, tomado do mais puro sentimento de vergonha, envolvido pela mais tétrica sensação de revolta interior, é que lhes ofereço, mais uma vez, as sábias palavras de Nelson Rodrigues à desculpa de mote de reflexão para o que se vai tratar mais à frente a respeito de um outro Botafogo, O Botafogo da Paraíba.
“Ponha uma barba postiça num torcedor do Botafogo, e dêem-lhe óculos escuros, raspem-lhe as impressões digitais e, ainda assim, ele será inconfundível. Por que?
Pelo seguinte: – há no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal. Pergunto eu: – por que vamos ao campo de futebol? Porque esperamos a vitória. Esse otimismo é o impulso interior que nos leva a comprar ingresso e vibrar os noventa minutos. E, no campo, o otimismo continua a crepitar furiosamente. Não importa que o nosso time esteja perdendo de 15 a 0. Até o penúltimo segundo, nós ainda esperamos a virada, ainda esperamos a reação. Pois bem: – o torcedor do Botafogo é o único que, em vez de esperar a vitória, espera decisivamente a derrota”.
Fique claro ao torcedor que o trecho acima de uma crônica de Nelson Rodrigues sobre as características peculiares da torcida do Botafogo do Rio – e até do próprio time – trata exclusivamente de uma realidade distante da realidade vivida pelos paraibanos que torcem pelo outro Botafogo, o da Paraíba. Entretanto, acreditem, essa realidade não está tão distante assim. Daí o ensejo de trazê-lo aqui para a nossa conversa de hoje.
É que o Botafogo da Paraíba quando foi fundado, no dia 28 de setembro de 1931, por uma turma de amantes do futebol que incluía, entre outros, nomes como o de Beraldo de Oliveira, teve como inspiração originária a então monumental equipe do Botafogo de Futebol e Regatas do Rio de Janeiro. Foi no futebol genial daquela equipe carioca de antanho que se inspiraram os fundadores do nosso Botafogo a ponto de tomar-lhe de empréstimo o próprio nome, à guisa de homenagem e de imitação.
Pois bem! Diz-se que o nome modifica a coisa nomeada. Dito de outra maneira: o nome como que conforma à sua origem histórica e significação etmológica aquilo que designa. Daí que foi a propósito que grifei a frase final do trecho da crônica acima escrito para unicamente sublinhar a aplicação de sua verdade a nossa realidade próxima, pois o torcedor do Botafogo da Paraíba é hoje, sem tirar nem por, o único que, em vez de esperar a vitória, espera decisivamente a derrota. Mais uma vez, as histórias dos dois clubes (os Botafogos do Rio e da Paraíba) se entrelaçam de maneira irônica e, pior, profundamente trágica.
Desçamos, portanto, à crônica de uma tragédia anunciada. Quando o Botafogo da Paraíba iniciou a sua temporada deste ano com a perspectiva de disputar o Campeonato do Nordeste, o campeonato paraibano, a Copa do Brasil e, provavelmente, a terceira divisão do Campeonato Brasileiro de 2001, apontamos, aqui mesmo nesta coluna, os erros estratégicos cometidos pela diretoria do clube em relação ao projeto que estava se propondo por em prática. Um destes erros, aliás, o mais grave deles, era reincidente: o fato de a diretoria ter desmanchado pela segunda vez um time inteiro e contratado outro na semana da estréia da competição regional. Ora, sem uma base precedente que desse ao técnico da equipe uma segurança tática mínima para montar o time, era absolutamente previsível que a equipe patinasse ante os adversários melhor estruturados e de maior tradição no Nordeste. Bastou assistirmos à primeira partida do Botafogo e vaticinamos de pronto: “da forma como está sendo gerida a equipe, este time não vai a lugar nenhum”.
A estes erros iniciais básicos foram se seguindo outros não menos relevantes: a contratação em massa de jogadores de qualidade duvidosa do eixo São Paulo-Sul, que não conheciam nada da realidade futebolística do Nordeste, a troca permanente de treinadores (até o momento já foram três os técnicos dispensados) e a correspondente dispensa dos jogadores que, por deficiência técnica ou por indisciplina, não estava dando conta do recado (até o momento foram 26 os jogadores dispensados pela diretoria do Clube). Haja acúmulo de erros!
O resultado previsível, anote-se, desta tragédia está sendo colhido por meio de números frios e insultantemente negativos: o time é o último colocado do Campeonato do Nordeste, está fora da Copa do Brasil e, a exceção de duas parcas vitórias no campeonato paraibano, das treze partidas que disputou nos certames regional e nacional, empatou quatro e o resto perdeu todas. A última (o universo inteiro tomou conhecimento) pelo humilhante placar de 10 a 0 para o São Paulo Futebol Clube, na quarta-feira passada.. A maior vitória em termos de gols na história do São Paulo e, consequentemente, a pior derrota numérica em toda a história do Botafogo.
O jogo em si foi em tudo uma representação bizarra, dentro do campo, daquilo que está se passando fora dele, nos bastidores da atual administração do clube. Um time totalmente desencontrado, perdido, sem liderança técnica ou tática, enfim, sem planejamento algum para vencer. A defesa não defende, o meio de campo não arma nem desarma e o ataque, isolado, não ofende a uma mosca. Assim é a diretoria do Botafogo: faz uma coisa e depois desfaz, trata as ações administrativas de forma temperamental e não racionalmente, e, como se a Administração não fosse uma ciência com razoável grau de controle de suas variáveis, debita ao azar as conseqüências de seus erros. Este cenário, assim, só comporta três explicações: má fé, incompetência ou ingenuidade.
Seja uma, duas ou três as explicações plausíveis, futebol é coisa séria. O futebol é um esporte que, para o brasileiro, vai muito mais além de perder ou ganhar. Tem a ver com as paixões humanas e dentro delas, com as suas contingências. Tem a ver com identidade cultural (lembrem-se do solitário torcedor que estava no Morumbi com a camisa do Botafogo da sua Paraíba), tem a ver com a superação simbólica dos nossos limites, e, principalmente, como uma atividade essencialmente humana que é, tem a ver com dignidade.
E dignidade falta a quem vai a um estádio de futebol sabendo de antemão que é a derrota e não a vitória o que se busca. Dignidade falta a uma equipe que ao invés de se espelhar no que há de melhor na história do seu confrade homônimo, imita o que há de pior. Fosse eu da atual diretoria do Botafogo, baixava a cabeça com o que resta de dignidade, pedia o boné e fazia como aquele personagem do romance Cem anos de Solidão, do autor da Crônica de uma morte anunciada, Gabriel Garcia Marques:
“O Coronel Aureliano Buendía promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um por um numa só noite, antes que o mais velho completasse trinta e cinco anos. Escapou de catorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento. Sobreviveu a uma dose de estricnina no café que daria para matar um cavalo. Chegou a ser comandante geral das forças revolucionárias, com jurisdição e mando de uma fronteira a outra, e o homem mais temido pelo governo, mas nunca permitiu que lhe tirassem uma fotografia”.
Detalhe: o coronel Aureliano Buendía nunca permitiu que lhe tirassem uma fotografia justamente por pura dignidade.
Publicado no Jornal A UNIÃO - João Pessoa-PB - 01 de abril de 2001.
HISTÓRIA:
Jogo ocorrido no Estádio do Morumbi, em São Paulo, em 28/03/2001, válido pela Copa do Brasil.
SÃO PAULO: Róger; Reginaldo Araújo, Rogério Pinheiro (Daniel), Jean e Gustavo Nery: Carlos Miguel, (Alexandre), Fábio Simplício, Káka e Júlio Batista; França e Luis Fabiano.
Gols: França (3); Julio batista (2); Luis Fabiano (2) Gustavo Nery, Kaká e Fábio Simplício (um cada).
BOTAFOGO-PB: Davi; Chininha, Noquinha, Freitas e Enoque; Léo Oliveira, Russo, Marcos Telles e Messias (Dener); Jurandi e Chapecó.
Foto de Walter Firmo

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