O futebol como um fenômeno da cultura brasileira

As coisas só acontecem por acaso, necessidade ou vontade nossa! Epicuro - filósofo.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Os verdes gramados quando de preto tingidos


Dedico este texto ao garoto Jose Mayta,
que torcia pelo Universitário do Peru,
seu time do coração, e morreu queimado
com um rojão durante uma partida do
campeonato peruano de futebol.


Posto que a vida é movimento, todos saibamos, o esporte de um modo geral – e o futebol em particular – existe para celebrar a vida. E não é outro o sentido que encerra a famosa sentença: mens sana in corpore sano. Todos os atletas de todas as modalidades esportivas formam, assim, uma espécie de arautos eloqüentes dessa máxima latina. Eles carregam em seus músculos a força e o sentido pulsante da afirmação vital. São a elocução peremptória – seja nas pistas de atletismo, nos ringues de boxe ou nos campos de futebol – da vitória, ainda que transitória, do instinto de vida sobre o instinto de morte. Eros vencendo Thanatos, como explicaria Freud. Ocorre, porém, que o esporte é essencialmente humano. E sendo assim, não está incólume às vicissitudes contingentes da nossa condição.
Elaborei dessa maneira a introdução desta crônica de domingo após passar em revista – e esse é também o dever de um cronista – os fatos esportivos deste mês que na minha modesta avaliação tiveram relevância humana no seu permanente conteúdo de tristeza e de alegria, de comédia ou de tragédia.
Resultou, portanto, dessa minha avaliação aleatória e arbitrária dos fatos, uma convicção a que cheguei sem que quisesse: as coisas da morte, muita mais que as da vida, também no esporte, tocam mais profundo a alma do cronista. Refiro-me aqui a uma notícia que colhi num canto de página de jornal onde jazia quase esquecida: o suicídio do jovem atacante argentino de 21 anos do San Lorenzo, Mirko Saric, ocorrido no último dia 4 deste mês. Abdicando de viver, Saric inexplicavelmente enforcou-se com uma corda pendurada numa viga dentro da sua própria casa, no bairro de Flores, em Buenos Aires.
Mirko Saric havia estreado na primeira divisão do futebol argentino há apenas dois anos. Tinha disputado 41 partidas e marcado quatro gols. Quando resolveu se enforcar, estava se recuperando de uma forte lesão nos ligamentos cruzados do joelho, contusão que o vinha mantendo afastado da sua equipe nos últimos meses.
Como quase todos os suicidas, Saric não aparentava motivo para cometer o ato. Era jovem, bem parecido, muito assediado pelas mulheres, detentor de um bom contrato e atuava em um time de nível do futebol argentino. Consta, contudo, que era depressivo. O que teria, então, levado Saric a se matar? Seriam mesmo os tais inescrutáveis mistérios humanos?
Não para explicá-los, posto que inescrutáveis, mas para lançar luz neste inextricável campo das coisas humanas, foi que lancei mão de minhas gavetas de acontecimentos pretéritos. Nelas, encontrei fatos e relações possíveis entre eles. O passado explicando o presente, talvez. Encontrei também uma crônica de Nelson Rodrigues que discute o tema do suicídio e que, devido ao seu pungente apelo humano, merece transcrição nesta coluna, como uma homenagem ao maior dos cronistas esportivos do Brasil:
“Cada um de nós é um suicida frustrado. E se ainda não estouramos os miolos, ou não pendemos de uma forca, ou não tomamos formicida, é que nos salva, sempre, em cima da hora, a nossa incoercível pusilanimidade vital. Mas se cancelamos o nosso suicídio, admiramos e, mais do que isso, invejamos o alheio. Vejam Maneco, o ex-craque do América, que bebeu formicida na casa de um parente.
Outros jogadores já morreram: - de doença, de acidente e, até, de fome. Mas o suicida não é um morto qualquer. Tem uma morte única, inconfundível, inalienável. Ou por outra: - não morreu, propriamente, matou-se. E, com o exemplo de Maneco, verificamos, ainda uma vez, que o suicídio tece um parentesco sutil, mas irresistível, entre nós e o defunto. Quando os jornais e o rádio anunciaram o fato, cada leitor e cada ouvinte sentiu-se crispado e irmão de Maneco. Eu soube na rua. Um amigo meu, que vinha em sentido contrário, atirou-me na cara a notícia: - “Suicidou-se o Maneco!”.
Era atualmente um simples técnico de juvenil, no América. Fora escorraçado nos jornais. Ninguém falava nele e só uns poucos lembravam-se de sua passagem pelo futebol. E, no entanto, raríssimos craques tiveram uma carreira tão fulgurante, embora breve, muito breve. Houve um momento em que aparecia todos os dias, no berro gráfico das manchetes. Basta dizer o seguinte: - chegou a suplantar, a barrar no escrete o grande Ademir. E numa segunda-feira, após um Brasil x Argentina, foi demais: - seu nome encheu todas as bocas como saliva. E que fizera ele para pôr assim histérica uma cidade? Apenas isto: - três ou quatro jogadas de antologia. O futebol de Maneco era realmente enfeitado, pulado, colorido como um índio de carnaval. Mas essa glória, que era alucinante, foi também muito rápida.
E, súbito, o craque começou a perceber que a multidão já lhe negava o aplauso. Se, ao menos, fosse vaiado! Mas nem isso, nem isso! Por fim, quando se falava nele, já faziam confusão: - “Maneca, do Vasco?” Não há ninguém mais desconhecido. Ninguém mais obscuro, ninguém mais anônimo do que o sujeito que foi célebre um dia. Quanto à imprensa, o rádio, à televisão, viviam esfregando na nossa cara o outro Maneco mais atual: - Didi. Por último, veio a história dos quarenta contos, que não pôde pagar. O meu confrade Carlos Renato disse bem: - numa terra em que todos devem, Maneco morreu de paixão, por uma dívida.
Cabe nesta crônica o raciocínio: - o ex-craque matou-se por causa de quarenta contos. E assim sendo todos os que, na face da terra, aqui ou alhures, dispõem de uma importância igual ou maior, estão implicados no episódio. Por outro lado é um erro considerar-se o suicídio como tal. Na verdade, ele representa algo mais: - é um assassinato. Examinemos uma relação, ainda que sumária, dos que influíram no seu desespero: - primeiro os que tinham quarenta contos ou mais; e, depois, todos nós e cada um de nós. Sim, amigos: todos os que lhe negamos o aplauso, que lhe viramos as costas, que o confundimos com o Maneco do Vasco, que o esquecemos, somos co-assassinos de Maneco”.

Cabe, também, ainda nesta crônica, outro raciocínio, para continuarmos na linha rodrigueana: Por que, então, teria se matado Mirko Saric, o jovem atacante argentino do San Lorenzo? Que fique claro: o ser humano é muito mais perguntas do que respostas.
Foto de Walter Firmo

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