O futebol como um fenômeno da cultura brasileira

As coisas só acontecem por acaso, necessidade ou vontade nossa! Epicuro - filósofo.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Um jogo muito bem pensado

Na história do pensamento humano, a bola, o círculo, a forma geométrica do universo, sempre estiveram presentes como uma questão. Da Physis aristotélica à concepção do tempo cíclico de Nietzsche (meu filósofo preferido), passando pela noção da linguagem como jogo em Wittgenstein, a bola sempre esteve ali, pra ser chutada. Até que alguém teve uma grande idéia! O futebol, enfim, entrava definitivamente para a filosofia. Olha isso!!!

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

1,2,3,4,5,6,7,8,9 10: Que vergooooonha!!!


Amigos, tomado do mais puro sentimento de vergonha, envolvido pela mais tétrica sensação de revolta interior, é que lhes ofereço, mais uma vez, as sábias palavras de Nelson Rodrigues à desculpa de mote de reflexão para o que se vai tratar mais à frente a respeito de um outro Botafogo, O Botafogo da Paraíba.
“Ponha uma barba postiça num torcedor do Botafogo, e dêem-lhe óculos escuros, raspem-lhe as impressões digitais e, ainda assim, ele será inconfundível. Por que?
Pelo seguinte: – há no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal. Pergunto eu: – por que vamos ao campo de futebol? Porque esperamos a vitória. Esse otimismo é o impulso interior que nos leva a comprar ingresso e vibrar os noventa minutos. E, no campo, o otimismo continua a crepitar furiosamente. Não importa que o nosso time esteja perdendo de 15 a 0. Até o penúltimo segundo, nós ainda esperamos a virada, ainda esperamos a reação. Pois bem: – o torcedor do Botafogo é o único que, em vez de esperar a vitória, espera decisivamente a derrota”.
Fique claro ao torcedor que o trecho acima de uma crônica de Nelson Rodrigues sobre as características peculiares da torcida do Botafogo do Rio – e até do próprio time – trata exclusivamente de uma realidade distante da realidade vivida pelos paraibanos que torcem pelo outro Botafogo, o da Paraíba. Entretanto, acreditem, essa realidade não está tão distante assim. Daí o ensejo de trazê-lo aqui para a nossa conversa de hoje.
É que o Botafogo da Paraíba quando foi fundado, no dia 28 de setembro de 1931, por uma turma de amantes do futebol que incluía, entre outros, nomes como o de Beraldo de Oliveira, teve como inspiração originária a então monumental equipe do Botafogo de Futebol e Regatas do Rio de Janeiro. Foi no futebol genial daquela equipe carioca de antanho que se inspiraram os fundadores do nosso Botafogo a ponto de tomar-lhe de empréstimo o próprio nome, à guisa de homenagem e de imitação.
Pois bem! Diz-se que o nome modifica a coisa nomeada. Dito de outra maneira: o nome como que conforma à sua origem histórica e significação etmológica aquilo que designa. Daí que foi a propósito que grifei a frase final do trecho da crônica acima escrito para unicamente sublinhar a aplicação de sua verdade a nossa realidade próxima, pois o torcedor do Botafogo da Paraíba é hoje, sem tirar nem por, o único que, em vez de esperar a vitória, espera decisivamente a derrota. Mais uma vez, as histórias dos dois clubes (os Botafogos do Rio e da Paraíba) se entrelaçam de maneira irônica e, pior, profundamente trágica.
Desçamos, portanto, à crônica de uma tragédia anunciada. Quando o Botafogo da Paraíba iniciou a sua temporada deste ano com a perspectiva de disputar o Campeonato do Nordeste, o campeonato paraibano, a Copa do Brasil e, provavelmente, a terceira divisão do Campeonato Brasileiro de 2001, apontamos, aqui mesmo nesta coluna, os erros estratégicos cometidos pela diretoria do clube em relação ao projeto que estava se propondo por em prática. Um destes erros, aliás, o mais grave deles, era reincidente: o fato de a diretoria ter desmanchado pela segunda vez um time inteiro e contratado outro na semana da estréia da competição regional. Ora, sem uma base precedente que desse ao técnico da equipe uma segurança tática mínima para montar o time, era absolutamente previsível que a equipe patinasse ante os adversários melhor estruturados e de maior tradição no Nordeste. Bastou assistirmos à primeira partida do Botafogo e vaticinamos de pronto: “da forma como está sendo gerida a equipe, este time não vai a lugar nenhum”.
A estes erros iniciais básicos foram se seguindo outros não menos relevantes: a contratação em massa de jogadores de qualidade duvidosa do eixo São Paulo-Sul, que não conheciam nada da realidade futebolística do Nordeste, a troca permanente de treinadores (até o momento já foram três os técnicos dispensados) e a correspondente dispensa dos jogadores que, por deficiência técnica ou por indisciplina, não estava dando conta do recado (até o momento foram 26 os jogadores dispensados pela diretoria do Clube). Haja acúmulo de erros!
O resultado previsível, anote-se, desta tragédia está sendo colhido por meio de números frios e insultantemente negativos: o time é o último colocado do Campeonato do Nordeste, está fora da Copa do Brasil e, a exceção de duas parcas vitórias no campeonato paraibano, das treze partidas que disputou nos certames regional e nacional, empatou quatro e o resto perdeu todas. A última (o universo inteiro tomou conhecimento) pelo humilhante placar de 10 a 0 para o São Paulo Futebol Clube, na quarta-feira passada.. A maior vitória em termos de gols na história do São Paulo e, consequentemente, a pior derrota numérica em toda a história do Botafogo.
O jogo em si foi em tudo uma representação bizarra, dentro do campo, daquilo que está se passando fora dele, nos bastidores da atual administração do clube. Um time totalmente desencontrado, perdido, sem liderança técnica ou tática, enfim, sem planejamento algum para vencer. A defesa não defende, o meio de campo não arma nem desarma e o ataque, isolado, não ofende a uma mosca. Assim é a diretoria do Botafogo: faz uma coisa e depois desfaz, trata as ações administrativas de forma temperamental e não racionalmente, e, como se a Administração não fosse uma ciência com razoável grau de controle de suas variáveis, debita ao azar as conseqüências de seus erros. Este cenário, assim, só comporta três explicações: má fé, incompetência ou ingenuidade.
Seja uma, duas ou três as explicações plausíveis, futebol é coisa séria. O futebol é um esporte que, para o brasileiro, vai muito mais além de perder ou ganhar. Tem a ver com as paixões humanas e dentro delas, com as suas contingências. Tem a ver com identidade cultural (lembrem-se do solitário torcedor que estava no Morumbi com a camisa do Botafogo da sua Paraíba), tem a ver com a superação simbólica dos nossos limites, e, principalmente, como uma atividade essencialmente humana que é, tem a ver com dignidade.
E dignidade falta a quem vai a um estádio de futebol sabendo de antemão que é a derrota e não a vitória o que se busca. Dignidade falta a uma equipe que ao invés de se espelhar no que há de melhor na história do seu confrade homônimo, imita o que há de pior. Fosse eu da atual diretoria do Botafogo, baixava a cabeça com o que resta de dignidade, pedia o boné e fazia como aquele personagem do romance Cem anos de Solidão, do autor da Crônica de uma morte anunciada, Gabriel Garcia Marques:
“O Coronel Aureliano Buendía promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um por um numa só noite, antes que o mais velho completasse trinta e cinco anos. Escapou de catorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento. Sobreviveu a uma dose de estricnina no café que daria para matar um cavalo. Chegou a ser comandante geral das forças revolucionárias, com jurisdição e mando de uma fronteira a outra, e o homem mais temido pelo governo, mas nunca permitiu que lhe tirassem uma fotografia”.
Detalhe: o coronel Aureliano Buendía nunca permitiu que lhe tirassem uma fotografia justamente por pura dignidade.
Publicado no Jornal A UNIÃO - João Pessoa-PB - 01 de abril de 2001.
HISTÓRIA:
Jogo ocorrido no Estádio do Morumbi, em São Paulo, em 28/03/2001, válido pela Copa do Brasil.
SÃO PAULO: Róger; Reginaldo Araújo, Rogério Pinheiro (Daniel), Jean e Gustavo Nery: Carlos Miguel, (Alexandre), Fábio Simplício, Káka e Júlio Batista; França e Luis Fabiano.
Gols: França (3); Julio batista (2); Luis Fabiano (2) Gustavo Nery, Kaká e Fábio Simplício (um cada).
BOTAFOGO-PB: Davi; Chininha, Noquinha, Freitas e Enoque; Léo Oliveira, Russo, Marcos Telles e Messias (Dener); Jurandi e Chapecó.
Foto de Walter Firmo

A pelada que nos salva


Existe uma espécie de consenso entre quase todos os amantes do futebol: a certeza de que muito melhor do que assistir a jogos de futebol, ver futebol, ir ao estádio acompanhar seu time jogar, enfim, prostrar-se frente à TV para torcer pelo seu clube do coração, só mesmo jogar futebol. E foi justamente para isso, para essa prática descompromissada do futebol que inventou-se a “pelada”. A pelada é uma daquelas instituições sem as quais os brasileiros não podem viver.
O sujeito passa sem a previdência social, sem a universidade, sem a instituição bancária, prescinde do automóvel, prescinde da profissão, esquece o salário mínimo, vive sem o viagra, passa até sem o cardiologista, mas não vive sem uma saudável pelada no meio ou nos fins de semana. E a pelada não serve apenas, como parece ser o seu objetivo primordial, para que ponhamos em dia, nesses tempos de sedentarismo, a nossa parca condição física. Também não serve apenas, como parece ser a sua finalidade acessória, para baixarmos aquela “barriguinha” de que a mulher, ou a amante, ou a namorada, reclama tanto.
A pelada é muito mais do que isso. Conheço sujeitos que jogam a sua peladinha como o seu mais eficiente regulador psicológico. Diria que há até indivíduos que só ainda não cometeram suicídio por causa da saudável prática de sua bendita pelada. Para escapar do ontológico destino, como diriam os niilistas, de terem vindo do nada e caminharem inexoravelmente para o nada, há os indivíduos que bebem, os que viram santo, os que batem na mulher, os que se julgam profetas, os que despirocam de vez, os que tomam cianureto, e os que, enfim, jogam sua pelada.
A pelada, para falarmos um pouco da sua origem e melhor compreendermos a sua importância humana, cultural, antropológica mesmo, surgiu na vida do brasileiro por uma questão, digamos, sociológica. Todos sabem que quando o futebol chegou ao Brasil, trazido pelas mãos, ou melhor, pelos pés de Charles Miller, aqui se instalou pelas mãos – e, claro, pelos pés - das elites. Assim, no seu início, o futebol era um esporte eminentemente elitista do qual os pobres, os negros, os proletários, a por eles chamada “gentinha”, enfim, não podiam tomar parte.
Para evitar o achego ao esporte dessas classes da base da pirâmide social, os membros da elite brasileira do fim do século passado e início deste século praticavam o futebol em recintos fechados e só franqueados a seus membros: os chamados clubes sociais que até hoje conhecemos. Como o esporte era sedutor para todos, os pobres, os negros e os proletários, que inicialmente entravam apenas como platéia formando o que hoje conhecemos como a torcida, resolveram entrar verdadeiramente no jogo. E o que fizeram para poderem praticar tão maravilhoso esporte? Desceram de cima dos muros dos clubes onde se amontoavam para ver os ricos jogar e fundaram a pelada.
Em que, então, consistia, a pelada? Consistia no seguinte: o sujeito descia dos muros dos clubes, convidava os amigos e, no meio da rua, ali no meio das esburacadas ruas dos subúrbios, as chamadas várzeas do futebol, colocavam quatro pedras no chão para formarem as traves, compunham dois times de amigos e, de canelas nuas, sem a indumentária adequada – daí o termo “pelada”, porque jogavam “pelados”- iam imitar os membros da elite brasileira naquele jogo espetacular. Como vocês podem ver, também no futebol já se reproduziam as relações perversas mantidas no Brasil entre a sua elite e o seu povo.
Mas deixemos de sociologismos e vamos ao que interessa. E o que interessa é registrarmos aqui a importância da “pelada” na vida do brasileiro e, por conseqüência, do próprio futebol. Como o propósito dessa coluna é o de discutirmos o futebol sob o prisma da cultura, trouxe hoje aqui para bater uma bola com vocês um craque da pelada em uma de suas tantas antológicas jogadas. Trata-se do músico, compositor e verdadeiro cronista da MPB, o famoso Aldir Blanc, parceiro de João Bosco e autor de pérolas do nosso cancioneiro popular tais como “Tá lá um corpo estendido no chão” e “Corsário”. Escutemos então, através da sua pena de cronista, esse texto genial sobre a “pelada” intitulado: “Enterrem meu coração no mato da várzea”. Eis o texto:

“A pelada na várzea é o clássico que disputamos em nossos melhores sonhos. Em cada craque milionário mora o fominha com a unha do dedão lascada por ter chutado, no fim da pelada, já de noite, uma pedra drummondiana. Todos estivemos lá um dia, e a solenidade de nossos gestos, antes da partida, era de final de Copa do Mundo: coração batendo forte, boca seca, calçando os velhos meiões (os meus eram azuis e brancos), passando o cadarço da chuteira por debaixo da sola antes de amarrar, sentindo o cheiro de sol de quarador e de sabão vagabundo na camisa que o dono nos entregava... Sim, aquele jogo, num sábado que parecia igual a todos os outros, pros lados de Ramos, seria o maior da minha vida. O resultado real importa pouco. Porque aquele jogo, naquele sábado, com a favela em torno e tiros na hora em que o adversário entrou em campo, foi aprimorado inúmeras vezes na memória e no sonho. Nessas lembranças oníricas, que são também celebração de uma adolescência cada vez mais distante, e por isso cada vez mais presente, aquele banal rito de passagem vem aos poucos adquirindo contornos de mito: o escorregão na lateral, que quase atira o esquálido zagueiro na vala, transformou-se num drible espetacular, após o firme desarme do ponta deles, arisco, um terror, e eu desço pela esquerda com a bola dominada, o vento na camisa, cheiro de sol e sabão vagabundo, cabeça erguida, como Nilton Santos, e, o sonho dos vinte anos, cruzei na testa do centroavante João Banana e gol! Mas nas reminiscências alcoólicas de um fim de noite no Lamas, com trinta e tantos anos, bati forte do meio da rua, e a redonda entrou no ângulo, no gogó da ema, lá onde a coruja dorme. Vencidos pela beleza do lance, os espectadores, até então hostis, aplaudiram, tímidos no começo, depois freneticamente, e um bêbado desdentado gritou:
“Valeu, Palito!”
Palito. É isso aí, meus netinhos: treinei no Vasco com esse apelido e quase, quase cheguei a titular. Problema nos meniscos.
Quando eu morrer, me enterrem num campinho de subúrbio, no menor e mais esburacado deles, perto da cabra vadia nelsonrodriguiana e de flores sem nome, e que um antológico passe de letra seja dado sobre a grama que prolongará meu peito onde, na várzea, um dia, vento na camisa, cheiro de sol e de sabão vagabundo, vibrou meu coração”.
Obs: Outra explicação para a origem do termo pelada: a palavra vem do espanhol pella (bola de borracha), daí pelada, jogo com bola de borracha.

Foto de Alexandre Battibugli